Cheiro a pó

Aquele horror era forte. Gonçalo entrou na sala velha e decadente, assustou-se de rompante. Deu um pequeno gemido, mas o silêncio pairava no ar com um odor forte. A sala não tinha qualquer material eléctrico, continha apenas dois sofás - já rotos e cheios de pó -, um tapete - já velho e sem marcas de pisadelas, uma cadeira baloiçante, um gira-discos e um simples candeeiro de tecto, com a luz fundida. As janelas, visivelmente velhas com toda as suas tintas a saltarem da madeira, ainda serviam para esconder o frio e o vento que se fazia sentir na rua, nas noites de Inverno.
- Que sala, tio Jeremias! Não tens nada eléctrico, a não ser este pobre candeeiro! Nem uma televisão, nem um computador portátil, que agora toda a gente tem, nem uma consola ou uma XBOX que nunca deixou de estar a “rular”. Enfim… como consegues aqui viver? – disse Gonçalo estupefacto.
- Gonçalo, não preciso disso tudo que disseste. Levanto-me, como e deito-me. É a minha rotina há anos. Não meto um pé aqui na sala!

O ingénuo e estupefacto menino ficou atordoado com o que vislumbrou naquela casa. Até mesmo com o pensamento retrógrado do seu tio. "Como será possível ele não ter nada do que é necessário?" pensou sem nenhuma demora. A irrealidade que seria estar naquela casa era tão real que o afugentava.
- É verdade, tenho as regras desta casa, a teoria dos 4T: tens que te deitar ao anoitecer; tens que verificar se as janelas ficam fechadas corretamente; tens de te levantar às oito da manhã nos dias de semana para me ajudares no meu minifúndio, e tens de te levantar às nove da manhã aos fins-de-semana para me ajudares a limpar a casa e vais comigo à praça. Por último, não podes deixar a casa de banho desarrumada. Como tu és jovem talvez te vá buscar uma televisão velha de uns primos, tenho-a no sótão.
- Quero ir para o meu quarto. Onde é?
- Anda, vou encaminhar-te lá.
Subiram umas escadas de madeira já ratadas e cheias de pó. Viraram à esquerda.
Gonçalo já esperava tudo! Pensava que era um quarto pequenino, sem janelas, uma porta de ferro e com uma cama de palha. Perante esta descrição, Gonçalo presumia que fosse uma masmorra!
-Aqui é o teu quarto. Tentei dar-lhe um jeito, mas não tive muito tempo.
-O quê? Isto é o meu quarto?
O quarto de Gonçalo era muito maior que duas salas ou, provavelmente, três juntas! Era enorme para tão pouca coisa. Um beliche com lençóis dobrados de cima da cama, um tapete, um pequeno móvel para pôr a roupa, um poof, que, para seu espanto, era vermelho. A sobriedade caracterizava aquele espaço simplório, modelos, singelo. Tudo era estranho e preocupante. Perdurava um raro cheiro a memórias de infância, uma infância quase perdida na sua mente. A cama pedia que a tirassem dali, o móvel aclamava socorro
 pelo pó que continha, o tapete precisava de alguém para o pisenhar todos os dias e, o pequeno poof vermelho, pedia apenas que o metessem num ambiente vivo e colorido. No íntimo de Gonçalo aquele quarto, aquelas quatro paredes, aquele ar quase irrespirável de pó, transmitia-lhe sofrimento e dor. Algo misterioso se entrava na pele do menino cada vez mais expectante. Ele queria descobrir a vivacidade do quase-morto daquela casa.
A contagem do tempo parou por ali. Tudo se viveu num abrir e fechar de olhos. O Verão passou e Gonçalo aprendeu muito. Para quê querer tanto se podemos desfrutar a vida, mesmo que sejam com coisas do século passado?! Gonçalo, ao contrário daquilo que pensava, conseguiu sobreviver sem a tecnologia. Aquele poof, no Verão, foi o sítio onde ele pensava sobre os erros que cometera num passado recente. Estudar e desfrutar eram as palavras-chave da sua vida daí em diante. Aprendeu a seleccionar as prioridades que tem na vida, por mais difíceis e tentadoras propostas que se entre-ponham diante dele.

Comentários

Lolo disse…
hei? :P eu já tinha lido!
Lolo disse…
oi? eu já tinha lido :D

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