Nutrir a alma


Num ímpeto ergo-me do colchão amargurado, não pelo peso, sim pelas angústias que nele são depositadas sem licença. Faz poucos meses que tomei a dignidade de o sobressaltar, não que não tenha dignidade para me deitar em qualquer colchão, salvo seja esse qualquer colchão, mas porque infortunadamente carrega uma alma. Uma alma quase verdadeira quanto curiosa que está desperta para o mundo. Passam carros de hora a hora, nesta madrugada onde espreita a brisa de verão, intrometida por meados de primavera. Em silêncio contundente abeiro-me à janela do quarto. Corro a cortina, com padrão pueril e transparente de vida, abro a persina ruidosa, descerro a janela e acerco-me da rua. Não sei quanto tempo passa, só o suficiente para dar conta de cada luz a apagar-se do outro lado da estrada. Do vizinho de cima a dar sinais de vida humana na sua versão mais profana, tendo a sorte de não ser o aspirador a trabalhar. Salve-se o génesis da questão. Respiro o ar quente que circula na cale, ansiando resignação da chuva de outrora. Com olhos fechados, tenho o mundo a meus pés. Quem me dera que nestes momentos tivesse terra molhada a suportar a minha alma. Poderei imaginá-la, mas o mar de convulsões internas é impossível de obter. É, assim, melhor conservar essa reminiscência apenas na gaveta que lhe é destinada por seu vínculo demasiado afetivo, claro, até ser consagrada noutros ensejos. Destapo os olhos envoltos nesta memória e continuo a minha missão de observar o alheio, abstraindo-me dos sons que me são oferecidos. Sei que recusar borlas de bordel pode ser descabido para alguns, mas mantenho-me obstinada quanto a este assunto. Inclino o pescoço para trás, endireito a coluna e roubo, sem crime óbvio, a corrente de oxigénio impuro que passa. O meu corpo inerte atrofia e tenta relaxar das inquietações que viveu há instantes nos lençóis. A minha alma, caridosa como sempre, acompanha-o. A maior vida que se atreve a assoalhar no escuro da noite é a alma, a minha, a única acordada e pronta a ser alimentada. Arrojada, inquieta-se com pouco, mas agiganta-se em muito. Com aura e apropriação de espaço, humaniza um corpo e dá voz ao silêncio do subconsciente. Existe maior sonho que desejarmos uma alma nutrida? Sem tomar partido óbvio, tão claro como o que é defendido firmemente, a ignorância pode dar acesso à sorte, mas nunca à honra do triunfo. Com os pés assentes e o corpo a manifestar tenacidade na dureza da postura colocada, ouço tiros a uns quarteirões próximos. Mantenho-me inflexível. Coragem é atributo que cresce dia para dia entre estas quatro paredes, de facto, surpreendo-me rotineiramente. Fecho os estores, encerro a janela, corro os cortinados. Deito-me no misericordioso colchão, na clemente cama. Estou terrivelmente cansada. Feliz, mas cansada. Abençoado espírito que compete por mais, que prioriza a introspeção e saúda o compassível. Podemos ter tudo, mas que nunca nos falte a alma. Boa noite.

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